Parado há três meses na Alameda dos Guatás, no bairro da Saúde, Zona Sul, o Subaru Impreza 1995 está sem as rodas e os vidros. O que algum dia rodou por aí como um respeitável sedã importado hoje é uma assombração mecânica, completamente suja e enferrujada. Seu proprietário, o gesseiro Julio Freitas, de 36 anos, que mora em frente, confessa ter sido o responsável por largar ali o veículo. Ele explica que o automóvel foi roubado em 2009 e recuperado pela polícia pouco tempo depois. “Mas os bandidos depenaram o carro e não tenho dinheiro para comprar as peças de reposição”, explica.
Cenas parecidas se repetem em muitos pontos da capital. Na Rua Aurélia, Zona Oeste, um Logus, também fabricado em 1995, ocupa uma vaga há mais de dois meses, com a lataria chamuscada por um incêndio ocorrido no estacionamento de um supermercado. Na Saúde, Zona Sul, a porta de uma clínica veterinária é “decorada” com uma Towner 1991 caindo aos pedaços. O responsável pelo carro, que não quis revelar o nome, alega ter vendido o monstrengo para um ferro-velho, que até hoje não apareceu para retirá-lo.

Remoção de carcaça: o processo costuma se arrastar por, no mínimo, três meses
Remoção de carcaça: o processo costuma se arrastar por, no mínimo, três meses
(Foto: Divulgação)
São histórias como essas que ajudam a alimentar a frota-fantasma nas vias de São Paulo. Segundo estimativas recentes da prefeitura, o problema alcançou proporções inéditas. A fiscalização recolheu no ano passado cerca de 1.300 carcaças, um número recorde na história. O trabalho é como enxugar gelo. Mesmo com os guinchos operando incessantemente, a quantidade de assombrações não diminui. No momento, há aproximadamente 1.500 delas paradas nas ruas da capital. “Estamos procurando mais áreas nos pátios para abrigar as sucatas, mas não é uma tarefa tão simples”, afirma Manoel Victor de Azevedo Neto, chefe de gabinete da Secretaria de Coordenação das Subprefeituras.
Uma questão que dificulta a agilização do processo é a burocracia. Demora muito tempo para que o poder público possa tomar uma providência. A novela dura em média três meses para chegar ao fim. Depois de cinco dias estacionado num mesmo lugar, um carro pode ser denunciado. Um fiscal comparece ao local para avaliar a situação e, se comprovada a suspeita de abandono, deixa uma notificação grudada na porta do modelo. Passados mais cinco dias úteis, caso a situação persista, a subprefeitura responsável pela área pode retirar o veículo e mandá-lo para um dos 31 depósitos municipais. Se quiser reaver o bem, o proprietário terá noventa dias para pagar uma multa de 12.000 reais. Poucos fazem isso, pois o valor desses carros costuma ser menor do que o da infração. A etapa final consiste no leilão da sucata. Um quilo de ferragem é vendido, em média, por 30 centavos. Com isso, o Subaru 1995, triste fim, valeria no máximo 500 reais.
Diante dessas dificuldades, algumas subprefeituras criaram forças-tarefa para tentar dar conta do serviço num ritmo mais rápido. Foi o que aconteceu recentemente na Casa Verde. Nos últimos meses, os fiscais fizeram marcação cerrada sobre 200 proprietários até que eles arrumassem uma solução para as carcaças que haviam deixado nas vias do bairro. Em Santana, uma operação semelhante começou em 2009. O saldo até agora é de 235 remoções. “Os carros largados se tornam um grande obstáculo em vários aspectos”, afirma José Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi. “Eles diminuem as vagas para estacionamento, podem servir de casa para moradores de rua ou viciados e ainda dificultam a limpeza do local”, completa ele.

José Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi: “Eles se tornaram um grande obstáculo“
José Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi: “Eles se tornaram um grande obstáculo“
 
(Foto: Pablo de Sousa/Cia de Luz)
Alguns artistas paulistanos resolveram chamar atenção para o descaso transformando as latas-velhas em cenários de instalações. Na Vila Madalena, por exemplo, os restos de um Santana Quantum abrigam hoje arranjos de plantas e flores feitos pelos integrantes do projeto Natureza Urbana. A história começou em 2007 por iniciativa de moradores como o arquiteto Geandre Tomazoni. “Queremos dar vida a uma massa de materiais jogada na cidade”, afirma ele. Desde então, o grupo realizou quatro grandes obras do tipo. No começo, a decoração era constantemente roubada. Mas, com o passar do tempo, a sabotagem acabou. “As pessoas hoje nos ajudam a cuidar e dão sugestões para incrementar os trabalhos”, conta Tomazoni. “Certa vez, numa manhã, vi alguns funcionários de um estacionamento regando a Quantum.”
A iniciativa despertou a atenção de curadores internacionais, que chamaram o grupo em 2009 para fazer uma intervenção do gênero num automóvel durante uma exposição em Graz, na Áustria. “As pessoas ficaram muito impressionadas com o resultado”, diz Tomazoni. No ritmo atual, caso nada seja feito em São Paulo, não vai faltar matéria-prima para as obras dos criadores do Natureza Urbana.