A multa de R$ 14 mil por abandono de veículo parece não intimidar – o número de carros recolhidos das ruas pela Prefeitura de São Paulo não para de aumentar. Em 2011, 1.500 veículos “esquecidos” por seus proprietários viraram sucata. No ano seguinte, foram 2.260.
De janeiro até o mês passado, foram retirados das vias da cidade 720 veículos em estado de abandono. O destino deles são os leilões. Dez foram realizados no decorrer de 2013.
A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que recolhe os veículos que estejam parados em local proibido, realizou outros três leilões neste ano. Foram vendidos 1.741 carros como sucata, gerando arrecadação de R$ 2,1 milhões. O último pregão foi realizado na quinta-feira passada.
Pelo telefone 156 ou no site sac.prefeitura.sp.gov.br, é possível denunciar um carro abandonado. Antes de o veículo ser removido, a Subprefeitura vai ao local e fixa uma notificação à carroceria, informando que o proprietário tem até cinco dias úteis para removê-lo.
Se o responsável não se manifestar, o histórico do carro será checado. Se não houver empecilho, o veículo passa a ser considerado sucata e tem inicio o procedimento de remoção.
Finais felizes
O administrador de empresas Paulo Rogério Adriani se considera um caçador de raridades. Apaixonado pela marca americana Dodge, ele estava a procura de um modelo diferente quando soube que havia um Intrepid em São Paulo.
Após fazer buscas em diversos pátios da Prefeitura, ele descobriu que o sedã estava no pádio de Guarulhos. “Mas, mesmo tendo os dados do carro, não consegui achá-lo, pois ele estava perdido entre mais de 10 mil veículos, esperando liberação para o leilão”, relembra.
Dois anos depois, um amigo de Adriani foi ao mesmo pátio e encontrou o modelo. O administrador foi, então, correndo ver como o carro estava.
Segundo ele, o Dodge, que havia sido tomado de seu antigo dono por falta de pagamento, estava no mesmo local desde 2001. Adriani arrematou o Intrepid em 2006, por R$ 12.750. “O motivo de eu querer resgatar esse carro é que se trata de um modelo raro no Brasil. Sei que existem, no máximo, sete unidades no País.” Ele gastou, com reparos e documentação, mais de R$ 20 mil. Mas agora o carro está tinindo.
Já o empresário Raphael Faccioli diz que quase perdeu as contas do montante investido em uma Toyota Hilux 1995, que encontrou nos fundos de uma fábrica, em 2011. “Fiz uma bela reforma. Da última vez que somei, tinha gasto uns R$ 25 mil nessa picape”, conta.
Quando Faccioli o viu pela primeira vez, o modelo estava com o motor desmontado em cima da caçamba, vidros abertos e coberto por uma capa de poeira. O propulsor havia fervido e, por causa da dificuldade de encontrar peças e do alto custo de mão de obra para o reparo, o antigo proprietário encostou o carro.
“Sou teimoso. Cismei com essa Hilux. Paguei R$ 7 mil para ficar com ela”, diz Faccioli, que levou a picape para casa para dar a primeira geral. O utilitário da Toyota ficou por 11 meses em uma oficina, onde foi feita a retífica do motor. “Se isso valeu a pena financeiramente, não sei ainda. Mas eu curti muito”, diz.
Encontrar nas ruas e avenidas de Belo Horizonte veículos abandonados não é tarefa difícil. O grande problema é que esses carros podem servir de foco de doenças como a dengue, ser abrigo para pragas como ratos e escorpiões, ou se transformar até mesmo em esconderijo para bandidos, armas e drogas. Apesar dos riscos para a saúde pública e para a segurança, autoridades afirmam que por estarem estacionados em locais permitidos, não há lei que permita retirar esses veículos da via pública.
O capitão da Polícia Militar de Minas Gerais Gedir Rocha esclarece que se o veículo estiver estacionado em local permitido (próximo ao meio fio, distante de entradas de garagens e pontos de ônibus, por exemplo), pode permanecer no local por tempo indeterminado.
Segundo a BHTrans, o automóvel não pode ser rebocado quando está parado em local permitido, nem mesmo se estiver com documentação irregular. No entanto, se o automóvel se transformou em hospedeiro de focos de doenças e entulhos, a prefeitura da cidade onde ele está localizado deve ser acionada pelo morador que se sentir prejudicado.
Em BH, o proprietário do veículo, assim como de lotes vagos, é notificado e pode ser multado em valor que chega a R$ 6.579. A medida, no entanto, não é regra. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde, cada município mineiro toma medidas distintas para evitar os riscos e os focos de doenças da maneira que achar mais eficaz.
Na Câmara Municipal existe um Projeto de Lei (número 573, de 2009, do vereador Paulinho Motorista) que propõe a proibição de veículos abandonados nas vias públicas, considerando que eles estejam gerando acúmulo de lixo e mato. O projeto prevê ainda a remoção dos veículos para um depósito de automóveis da prefeitura.
Enquanto o projeto não sai do papel, na Rua Oligisto, no Bairro Santa Tereza, Região Leste de Belo Horizonte, uma caminhonete abandonada em frente ao número 417 deve continuar estacionada por tempo indeterminado - apesar da preocupação dos moradores que convivem diariamente com o imbróglio. Além do risco de que ela seja usada como esconderijo para criminosos, a caçamba aberta se transformou em uma piscina por causa das chuvas. A água limpa e parada é ideal para a reprodução do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue.
À reportagem, moradores da rua disseram que o veículo, estacionado na frente de uma oficina mecânica, está no local há pelo menos um ano. A sujeira acumulada próximo às rodas do veículo confirma a denúncia. Sem querer se identificar, uma moradora contou que sua cunhada, vinda do interior, pegou um táxi na rodoviária e passou o endereço para o taxista. De imediato o motorista disse que sabia onde ficava a rua. "Essa rua é a da caminhonete vermelha que está abandonada, né?"
Em São Paulo existe remoção
A Prefeitura de São Paulo conta com amparo legal para remover os veículos abandonados nas ruas e avenidas da cidade. O artigo 161 da Lei Municipal 13.478 considera o veículo estacionado por cinco dias em via pública como bem abandonado. Após ser levado parar o pátio, o motorista é identificado e tem que pagar multa de R$ 500 por desrespeitar o artigo. Mas se o dono não for encontrado, o veículo vai à leilão.
No ano passado, a Prefeitura de São Paulo calculou que foram abandonados 500 carros nas ruas, mais de 40 por mês. Em Belo Horizonte, o levantamento não existe, já que o estacionamento por tempo indeterminado não é crime. Ao percorrer quatro endereços da capital mineira, a reportagem encontrou veículos em completo estado de abandono: janelas quebradas, cheios de lixo no interior e muitas vezes totalmente depredados. O curioso é que a maior parte dos automóveis estava localizada na porta de oficinas mecânicas. Alguns proprietários foram encontrados e o argumento dado foi o mesmo: "os carros não foram abandonados, estão aguardando conserto".
No Bairro Jardim Alvorada, Região Noroeste da capital, um Chevette incomoda os moradores da Rua Flor de Abril. Eles reclamam que o veículo, parado na contra-mão de direção, virou depósito de lixo. "Este carro está aqui há três meses acumulando lixo. Tenho medo de que vire um ninho de ratos ou esconda criminosos. Só não entendo porque o dono não parou o carro na porta da casa dele. Deve incomodar né?", questiona uma moradora.
O dono do veículo, o mecânico Genésio José de Oliveira, 56 anos, disse que está procurando lugar para deixar o carro, já que a oficina está cheia. Segundo ele, o Chevette foi adquirido de um homem que faleceu e hoje ele encontra dificuldades para resolver a documentação. "Assim que acertar este detalhe vou reformar o carro. Mas bem antes disso vou tirá-lo da rua", promete.
Situação semelhante acontece no Bairro Renascença, Região Nordeste. Lá, é um Fiat 147 estacionado no mesmo lugar há cinco anos que causa desconforto entre os moradores. Repleto de lixo e até com preservativos em seu interior, a situação explica o descontentamento da vizinhança. O dono do Fiat, Gérson Lúcio da Silva, 60 anos, também mecânico, rebateu as críticas e diz que o veículo não incomoda ninguém.
AMBIENTE
Frota de carros abandonados cresce na cidade
Subprefeituras criam programas de emergência para retirar das ruas veículos “vira-latas”
-
1 de 13 Subaru Impreza: abandonado há três meses na Saúde, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
2 de 13 Mazda: abandonado há seis meses na Chácara Inglesa, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
3 de 13 Towner: abandonado há um ano na Saúde, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
4 de 13 Logus: abandonado há dois meses na Lapa, Zona Oeste (Foto: Felipe Bertarelli)
-
5 de 13 Fiorino: abandonado há um ano no Planalto Paulista, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
6 de 13 Blazer: abandonada na Praça da Árvore, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
7 de 13 Premium: abandonado na Lapa, Zona Oeste (Foto: Felipe Bertarelli)
-
8 de 13 Mercedes: abandonada em Perdizes, Zona Oeste (Foto: Felipe Bertarelli)
-
9 de 13 Fusca: abandonado no Alto da Boa Vista, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
10 de 13 Kombi: abandonada no bairro Santo Amaro, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
11 de 13 Kombi: abandonada no bairro Santa Cruz, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
12 de 13 Monza: abandonado na Vila Mariana, Zona Sul (Foto: Felipe Bertarelli)
-
13 de 13 Tempra: abandonado na Lapa, Zona Oeste (Foto: Felipe Bertarelli)
Anterior
Próxima
Parado há três meses na Alameda dos Guatás, no bairro da Saúde, Zona Sul, o Subaru Impreza 1995 está sem as rodas e os vidros. O que algum dia rodou por aí como um respeitável sedã importado hoje é uma assombração mecânica, completamente suja e enferrujada. Seu proprietário, o gesseiro Julio Freitas, de 36 anos, que mora em frente, confessa ter sido o responsável por largar ali o veículo. Ele explica que o automóvel foi roubado em 2009 e recuperado pela polícia pouco tempo depois. “Mas os bandidos depenaram o carro e não tenho dinheiro para comprar as peças de reposição”, explica.
Cenas parecidas se repetem em muitos pontos da capital. Na Rua Aurélia, Zona Oeste, um Logus, também fabricado em 1995, ocupa uma vaga há mais de dois meses, com a lataria chamuscada por um incêndio ocorrido no estacionamento de um supermercado. Na Saúde, Zona Sul, a porta de uma clínica veterinária é “decorada” com uma Towner 1991 caindo aos pedaços. O responsável pelo carro, que não quis revelar o nome, alega ter vendido o monstrengo para um ferro-velho, que até hoje não apareceu para retirá-lo.
Remoção de carcaça: o processo costuma se arrastar por, no mínimo, três meses
(Foto: Divulgação)
São histórias como essas que ajudam a alimentar a frota-fantasma nas vias de São Paulo. Segundo estimativas recentes da prefeitura, o problema alcançou proporções inéditas. A fiscalização recolheu no ano passado cerca de 1.300 carcaças, um número recorde na história. O trabalho é como enxugar gelo. Mesmo com os guinchos operando incessantemente, a quantidade de assombrações não diminui. No momento, há aproximadamente 1.500 delas paradas nas ruas da capital. “Estamos procurando mais áreas nos pátios para abrigar as sucatas, mas não é uma tarefa tão simples”, afirma Manoel Victor de Azevedo Neto, chefe de gabinete da Secretaria de Coordenação das Subprefeituras.
Uma questão que dificulta a agilização do processo é a burocracia. Demora muito tempo para que o poder público possa tomar uma providência. A novela dura em média três meses para chegar ao fim. Depois de cinco dias estacionado num mesmo lugar, um carro pode ser denunciado. Um fiscal comparece ao local para avaliar a situação e, se comprovada a suspeita de abandono, deixa uma notificação grudada na porta do modelo. Passados mais cinco dias úteis, caso a situação persista, a subprefeitura responsável pela área pode retirar o veículo e mandá-lo para um dos 31 depósitos municipais. Se quiser reaver o bem, o proprietário terá noventa dias para pagar uma multa de 12.000 reais. Poucos fazem isso, pois o valor desses carros costuma ser menor do que o da infração. A etapa final consiste no leilão da sucata. Um quilo de ferragem é vendido, em média, por 30 centavos. Com isso, o Subaru 1995, triste fim, valeria no máximo 500 reais.
Diante dessas dificuldades, algumas subprefeituras criaram forças-tarefa para tentar dar conta do serviço num ritmo mais rápido. Foi o que aconteceu recentemente na Casa Verde. Nos últimos meses, os fiscais fizeram marcação cerrada sobre 200 proprietários até que eles arrumassem uma solução para as carcaças que haviam deixado nas vias do bairro. Em Santana, uma operação semelhante começou em 2009. O saldo até agora é de 235 remoções. “Os carros largados se tornam um grande obstáculo em vários aspectos”, afirma José Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi. “Eles diminuem as vagas para estacionamento, podem servir de casa para moradores de rua ou viciados e ainda dificultam a limpeza do local”, completa ele.
José Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi: “Eles se tornaram um grande obstáculo“
(Foto: Pablo de Sousa/Cia de Luz)
Alguns artistas paulistanos resolveram chamar atenção para o descaso transformando as latas-velhas em cenários de instalações. Na Vila Madalena, por exemplo, os restos de um Santana Quantum abrigam hoje arranjos de plantas e flores feitos pelos integrantes do projeto Natureza Urbana. A história começou em 2007 por iniciativa de moradores como o arquiteto Geandre Tomazoni. “Queremos dar vida a uma massa de materiais jogada na cidade”, afirma ele. Desde então, o grupo realizou quatro grandes obras do tipo. No começo, a decoração era constantemente roubada. Mas, com o passar do tempo, a sabotagem acabou. “As pessoas hoje nos ajudam a cuidar e dão sugestões para incrementar os trabalhos”, conta Tomazoni. “Certa vez, numa manhã, vi alguns funcionários de um estacionamento regando a Quantum.”
A iniciativa despertou a atenção de curadores internacionais, que chamaram o grupo em 2009 para fazer uma intervenção do gênero num automóvel durante uma exposição em Graz, na Áustria. “As pessoas ficaram muito impressionadas com o resultado”, diz Tomazoni. No ritmo atual, caso nada seja feito em São Paulo, não vai faltar matéria-prima para as obras dos criadores do Natureza Urbana.