LIXO AUTOMOTIVO
LATA VELHA
O triste destino dos carros
Se reciclados, eles valeriam um bom dinheiro. Mas as leis para isso
estão emperradas
Carros também morrem. E são abandonados nas ruas ou
levados a "cemitérios", como este em São Paulo.
Em tempos de trânsito cada vez mais
caótico nas grandes cidades, a reputação dos automóveis anda arranhada.
São eles os grandes vilões a atravancar uma eficiente
mobilidade urbana. No Brasil, há ainda outro fator que denigre a imagem dos veículos
automotores - no caso, aqueles que não estão mais rodando: a imensa frota
nacional de carros abandonados. Relegados ao
deus-dará nos pátios dos departamentos estaduais de trânsito por questões
legais - ou até mesmo esquecidos pelas ruas por motivos como falta de pagamento
de impostos ou multas em excesso -, eles são milhares espalhados pelas cidades
brasileiras, incluindo motocicletas, ônibus e caminhões.
Para agravar a situação, só em 2012 foram emplacados mais de 5,5 milhões de
veículos 0 km, segundo dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos
Automotores (Fenabrave). Isso significa que mais veículos deixarão de
circular e terão como destino um ferro-velho qualquer.
Além do perigo ambiental que representam,
esses restos mortais de lata também revelam a fortuna que o país deixa de
arrecadar por não reciclá-los. O Sindicato do Comércio Atacadista de Sucata
Ferrosa e Não Ferrosa do Estado de São Paulo (Sindinesfa) estima que só 1,5%
dos veículos fora de circulação é enviado àreciclagem. Nos Estados
Unidos e na maioria dos países europeus, o índice alcança 95%. Segundo o
Sindinesfa, tudo em um carro pode ser reaproveitado. Em especial, a carcaça e
as demais peças de metal. Elas voltam a ser matéria-prima nobre para as
indústrias siderúrgicas, que depois abastecem os fabricantes de novos veículos.
Só a cidade de São Paulo abriga uma mina de ouro em carros que já não rodam
mais e poderiam ser reprocessados. Em um dos maiores depósitos de veículos
apreendidos do país, o Pátio Santo Amaro, milhares deles apodrecem, de forma
perigosa, à beira do mais importante manancial
de abastecimento de água da capital paulista, a represa de
Guarapiranga, na zona sul da cidade. Na área de 80 mil metros quadrados,
situada a menos de mil metros do manancial, estão armazenados cerca de 20 mil
veículos, retirados das ruas pelo poder público. São automóveis e motocicletas
roubados, com chassi adulterado ou com irregularidades a ameaçar de
contaminação as águas que boa parte dos paulistanos bebe. Pela lei, cada um
deles só poderia estar ali por até três meses. Caso os proprietários não
regularizem a situação, esses automóveis deveriam ir a leilão.
Mas grande parte dessa frota fantasma enferruja no Pátio Santo Amaro há mais de
dez anos. A área é particular, e foi alugada pelo estado só para a guarda dos
veículos irregulares. O que era para ser um bom negócio ao proprietário se
transformou em estorvo e um grande imbróglio judicial, contra o governo, que se
arrasta há anos. Amargando um prejuízo do tamanho de seu terreno, o
proprietário demitiu os funcionários que cuidavam dos veículos, que agora estão
à mercê das intempéries e dos ladrões, que abastecem de peças desmanches
clandestinos. "O Tribunal de Justiça de São Paulo acaba de intimar, pela
quinta vez, o governador para retirar os veículos daqui. E isso deve ser feito
antes que aconteça um grande estrago ambiental", diz um representante do
Pátio Santo Amaro, que não quis se identificar por temer represálias. Há muitas
áreas semelhantes ao redor da represa de Guarapiranga.
Nem mesmo o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) sabe exatamente quantos
veículos estão sepultados em cemitérios irregulares. Questionado, o Contran -
por meio da assessoria de comunicação social do Ministério das Cidades, ao qual
está subordinado - limita-se a dizer que o assunto é de competência de cada
órgão de gestão viária dos estados e municípios. Mas reconhece que as questões
legais emperram a liberação dos veículos para a reciclagem, já que "a
alienação de sucata de veículo por órgão público deve cumprir de forma rigorosa
a lei de licitações, e envolve muitas formalidades", informa a assessoria.
CARROS: É PRECISO
RECICLAR MAIS - Sustentável na Prática
Afonso
Capelas Jr.
Você sabia
que a carcaça de um automóvel
velho pode ser 100%
reciclada? E que essa mesma carcaça, transformada em sucata de
aço, é totalmente reaproveitável pelas indústrias siderúrgicas, que a
transforma em matéria-prima novamente? O problema é que muitos carros velhos
não chegam às empresas recicladoras – que são muitas no Brasil – por causa de
entraves burocráticos. Como resultado, só 1,5% dos carros que saem de circulação no
Brasil é destinado à reciclagem.
Isto às vésperas da efetiva implantação da Política Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS).
A grande
maioria das carcaças que não seguem para a reciclagem é de veículos apreendidos
pela polícia por questões judiciais diversas. Para ter idéia, só na cidade
de São Paulo existem
mais de 45 mil veículos abandonados pelos
proprietários nos pátios dos órgãos de fiscalização do governo.
O mais
absurdo: só à beira da represa
de Guarapiranga, um dos maiores mananciais de água para o
abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo, existe milhares desses carros sucateados.
“Podem chegar a mais de 20 mil”, diz o presidente do Sindicato das Empresas de
Sucata de Ferro e Aço (Sindinesfa), Valentin Scamilla. “Eles representam um
problema ambiental sério. Estão apodrecendo e podem contaminar a represa com
a ferrugem e o vazamento de líquidos altamente tóxicos como óleos de freios e
motor, além dos fluidos de resfriamento e das baterias”, alerta Scamilla.
No final
do mês passado, o governo paulista anunciou que os 45 mil carros que
se acumulam e entopem os pátios da fiscalização serão destruídos e vendidos como
sucata para as indústrias de reciclagem. A medida só foi
possível graças a uma autorização do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Assim, os
donos dos carros velhos terão 10
dias para regularizar sua situação, ou desistir dos veículos.
“Para restituir seu automóvel, o proprietário terá que pagar multas e demais
despesas. Acontece que a maioria desses carros já não tem mais valor econômico
como veículo, somente como reciclagem”, explicou o secretário de Segurança
Pública, Fernando Grella Vieira, à Agência Brasil.
O
presidente do Sindinesfa acredita que mesmo assim essa situação possa voltar a
se repetir. “A solução
seria pagar bônus aos proprietários com veículos velhos
apreendidos, para que eles autorizem
a reciclagem, como já acontece em vários países, e instituir
pontos de coleta desses carros imprestáveis”.
Valentin
informa que hoje, no Brasil, de 3
a 4 milhões de carros deveriam ser reciclados e garante que as
empresas recicladoras estão totalmente equipadas para receber essas carcaças.
“Assim, com a chegada da Política
Nacional de Resíduos Sólidos, conseguiríamos aumentar a
quantidade de aço reciclado no país de atuais 30% para 50%”.
A maior
parte do aço recriado se transforma novamente em automóveis ou em vergalhões
para a construção civil. Infinitamente. Os benefícios para o planeta são
imensos: o processo de reciclagem
reduz a poluição do ar em 85% e o consumo de água em 76%,
se comparado à atividade de recorrer à natureza para retirar a matéria-prima
básica. Mais: para cada tonelada de aço reciclado há uma economia de 1 140
quilos de minério de ferro, além de uma diminuição no consumo de 154 quilos de
carvão e 18 quilos de cal.
No mundo
todo, a Turquia é
o país que mais reaproveita o aço dos automóveis. Lá, cerca de 80% deles são reciclados.
É uma necessidade, já que os turcos não dispõem de grandes reservas de minério
de ferro.
Carro abandonado é problema
Saiba o
que fazer com aquele veículo caindo aos pedaços na sua rua e entenda o que a
legislação diz sobre eles
Karina Craveiro
AE/Tiago Queiroz
720 veículos abandonados foram
recolhidos na capital em 2013
A multa de R$ 14 mil por abandono de veículo parece não intimidar
– o número de carros recolhidos das ruas pela Prefeitura de São Paulo não para
de aumentar. Em 2011, 1.500 veículos “esquecidos” por seus proprietários
viraram sucata. No ano seguinte, foram 2.260.
De janeiro até o mês passado, foram retirados das vias da cidade
720 veículos em estado de abandono. O destino deles são os leilões. Dez foram
realizados no decorrer de 2013.
A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que recolhe os
veículos que estejam parados em local proibido, realizou outros três leilões
neste ano. Foram vendidos 1.741 carros como sucata, gerando arrecadação de R$
2,1 milhões. O último pregão foi realizado na quinta-feira passada.
Pelo telefone 156 ou no site sac.prefeitura.sp.gov.br, é possível
denunciar um carro abandonado. Antes de o veículo ser removido, a Subprefeitura
vai ao local e fixa uma notificação à carroceria, informando que o proprietário
tem até cinco dias úteis para removê-lo.
Se o responsável não se manifestar, o histórico do carro será
checado. Se não houver empecilho, o veículo passa a ser considerado sucata e
tem inicio o procedimento de remoção.
Finais felizes
O administrador de empresas Paulo Rogério Adriani se considera um
caçador de raridades. Apaixonado pela marca americana Dodge, ele estava a
procura de um modelo diferente quando soube que havia um Intrepid em São Paulo.
Após fazer buscas em diversos pátios da Prefeitura, ele descobriu
que o sedã estava no pátio de Guarulhos. “Mas, mesmo tendo os dados do carro,
não consegui achá-lo, pois ele estava perdido entre mais de 10 mil veículos,
esperando liberação para o leilão”, relembra.
Dois anos depois, um amigo de Adriani foi ao mesmo pátio e
encontrou o modelo. O administrador foi, então, correndo ver como o carro
estava.
Segundo ele, o Dodge, que havia sido tomado de seu antigo dono por
falta de pagamento, estava no mesmo local desde 2001. Adriani arrematou o
Intrepid em 2006, por R$ 12.750. “O motivo de eu querer resgatar esse carro é
que se trata de um modelo raro no Brasil. Sei que existem, no máximo, sete
unidades no País.” Ele gastou, com reparos e documentação, mais de R$ 20 mil.
Mas agora o carro está tinindo.
Já o empresário Raphael Faccioli diz que quase perdeu as contas do
montante investido em uma Toyota Hilux 1995, que encontrou nos fundos de uma
fábrica, em 2011. “Fiz uma bela reforma. Da última vez que somei, tinha gasto
uns R$ 25 mil nessa picape”, conta.
Quando Faccioli o viu pela primeira vez, o modelo estava com o
motor desmontado em cima da caçamba, vidros abertos e coberto por uma capa de
poeira. O propulsor havia fervido e, por causa da dificuldade de encontrar
peças e do alto custo de mão de obra para o reparo, o antigo proprietário
encostou o carro.
“Sou teimoso. Cismei com essa Hilux. Paguei R$ 7 mil para ficar
com ela”, diz Faccioli, que levou a picape para casa para dar a primeira geral.
O utilitário da Toyota ficou por 11 meses em uma oficina, onde foi feita a
retífica do motor. “Se isso valeu a pena financeiramente, não sei ainda. Mas eu
curti muito”, diz.
AMBIENTE
Frota de
carros abandonados cresce na cidade
Subprefeituras criam programas de emergência
para retirar das ruas veículos “vira-latas”
1 de 13 Subaru
Impreza: abandonado há três meses na Saúde, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
2 de 13 Mazda:
abandonado há seis meses na Chácara Inglesa, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
3 de 13 Towner:
abandonado há um ano na Saúde, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
4 de 13 Logus:
abandonado há dois meses na Lapa, Zona Oeste (Foto:
Felipe Bertarelli)
5 de 13 Fiorino:
abandonado há um ano no Planalto Paulista, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
6 de 13 Blazer:
abandonada na Praça da Árvore, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
7 de 13 Premium:
abandonado na Lapa, Zona Oeste (Foto: Felipe Bertarelli)
8 de 13 Mercedes:
abandonada em Perdizes, Zona Oeste (Foto:
Felipe Bertarelli)
9 de 13 Fusca:
abandonado no Alto da Boa Vista, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
10 de 13 Kombi:
abandonada no bairro Santo Amaro, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
11 de 13 Kombi:
abandonada no bairro Santa Cruz, Zona Sul (Foto:
Felipe Bertarelli)
por Pedro Henrique Araújo
Parado há três meses na Alameda dos Guatás, no bairro da Saúde,
Zona Sul, o Subaru Impreza 1995 está sem as rodas e os vidros. O que algum dia
rodou por aí como um respeitável sedã importado hoje é uma assombração
mecânica, completamente suja e enferrujada. Seu proprietário, o gesseiro Julio
Freitas, de 36 anos, que mora em frente, confessa ter sido o responsável por
largar ali o veículo. Ele explica que o automóvel foi roubado em 2009 e
recuperado pela polícia pouco tempo depois. “Mas os bandidos depenaram o carro
e não tenho dinheiro para comprar as peças de reposição”, explica.
Cenas parecidas se repetem em muitos pontos da capital. Na Rua
Aurélia, Zona Oeste, um Logus, também fabricado em 1995, ocupa uma vaga há mais
de dois meses, com a lataria chamuscada por um incêndio ocorrido no
estacionamento de um supermercado. Na Saúde, Zona Sul, a porta de uma clínica
veterinária é “decorada” com uma Towner 1991 caindo aos pedaços. O responsável
pelo carro, que não quis revelar o nome, alega ter vendido o monstrengo para um
ferro-velho, que até hoje não apareceu para retirá-lo.
Remoção de carcaça: o processo costuma se arrastar por, no mínimo,
três meses
Uma questão que dificulta a agilização do processo é a
burocracia. Demora muito tempo para que o poder público possa tomar uma
providência. A novela dura em média três meses para chegar ao fim. Depois de
cinco dias estacionado num mesmo lugar, um carro pode ser denunciado. Um fiscal
comparece ao local para avaliar a situação e, se comprovada a suspeita de
abandono, deixa uma notificação grudada na porta do modelo. Passados mais cinco
dias úteis, caso a situação persista, a subprefeitura responsável pela área
pode retirar o veículo e mandá-lo para um dos 31 depósitos municipais. Se
quiser reaver o bem, o proprietário terá noventa dias para pagar uma multa de
12.000 reais. Poucos fazem isso, pois o valor desses carros costuma ser menor
do que o da infração. A etapa final consiste no leilão da sucata. Um quilo de
ferragem é vendido, em média, por 30 centavos. Com isso, o Subaru 1995, triste
fim, valeria no máximo 500 reais.
Diante dessas dificuldades, algumas subprefeituras criaram
forças-tarefa para tentar dar conta do serviço num ritmo mais rápido. Foi o que
aconteceu recentemente na Casa Verde. Nos últimos meses, os fiscais fizeram
marcação cerrada sobre 200 proprietários até que eles arrumassem uma solução
para as carcaças que haviam deixado nas vias do bairro. Em Santana, uma
operação semelhante começou em 2009. O saldo até agora é de 235 remoções. “Os
carros largados se tornam um grande obstáculo em vários aspectos”, afirma José
Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi. “Eles diminuem as vagas
para estacionamento, podem servir de casa para moradores de rua ou viciados e
ainda dificultam a limpeza do local”, completa ele.
José
Francisco Giannoni, subprefeito de Santana e Tucuruvi: “Eles se tornaram um
grande obstáculo“: Pablo de
Alguns artistas paulistanos resolveram chamar atenção para o
descaso transformando as latas-velhas em cenários de instalações. Na Vila
Madalena, por exemplo, os restos de um Santana Quantum abrigam hoje arranjos de
plantas e flores feitos pelos integrantes do projeto Natureza Urbana. A
história começou em 2007 por iniciativa de moradores como o arquiteto Geandre
Tomazoni. “Queremos dar vida a uma massa de materiais jogada na cidade”, afirma
ele. Desde então, o grupo realizou quatro grandes obras do tipo. No começo, a
decoração era constantemente roubada. Mas, com o passar do tempo, a sabotagem
acabou. “As pessoas hoje nos ajudam a cuidar e dão sugestões para incrementar
os trabalhos”, conta Tomazoni. “Certa vez, numa manhã, vi alguns funcionários
de um estacionamento regando a Quantum.”
A iniciativa despertou a atenção de curadores internacionais,
que chamaram o grupo em 2009 para fazer uma intervenção do gênero num automóvel
durante uma exposição em Graz, na Áustria. “As pessoas ficaram muito
impressionadas com o resultado”, diz Tomazoni. No ritmo atual, caso nada seja
feito em São Paulo, não vai faltar matéria-prima para as obras dos criadores do
Natureza Urbana.